Monday, November 4, 2019


Apontamentos sobre cinema e pintura


             (Este texto é parte de minha pesquisa de pós-doutorado - AS IMAGENS QUE NOS POSSUEM: VARIAÇÕES SOBRE A POSSESSÃO NOS FILMES DE HORROR SOBRENATURAL - ainda inédito. Convido a todos para seguirem-me através de várias temáticas, como a História da Arte e do Cinema, entre outras constelações estéticas que pretendo publicar aqui. Grato por seu tempo! )


          As relações de proximidade que a pintura apresenta com o cinema constituem um campo inesgotável de estudo, abrindo-se para diversas formas de abordagem.
Alguns movimentos básicos, a meu ver, poderiam ser tomados nesses fluxos e refluxos intermináveis entre as duas mídias.
Em princípio, se poderia observar uma condição em que os cineastas e equipe técnica se  apropriam de formas da pintura que estruturariam os planos, enquadramentos e/ou mesmo a disposição de uma determinada sequência: a regra de dois terços (compartilhada pela fotografia), a pictorialização pelos filtros fotográficos e/ou digitais nas imagens, entre outros recursos que aludem à pintura ou que se vale de suas regras de composição, ou mesmo as mate-paintings (quer artesanais, quer digitais). Dos filmes de Méliès com cenários pintados como fundo, passando pelos Rear-screen utilizados por Hitchcock e por vários cineastas até hoje, aos cenários em chroma key e/ou digitalizados de filmes como Star Wars ou O Senhor dos Anéis, a pintura continua interagindo com o cinema. [1]


                                       
                Regra dos terços. Fotograma de Seven: Os Sete Pecados Capitais (Se7en, EUA, 1995), dir. de David Fincher.

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Fotograma da versão restaurada (2011) de Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune, 1902), de Georges Méliès.


                      
                 Fotograma  de Os Pássaros (The Birds, 1963), de Alfred Hitchcock, com falso cenário, ao fundo,  em rear-screen. 


Num segundo momento, se poderia observar uma relação mais aberta, assim se poderia chamá-la, em que uma obra específica da pintura passa a assumir um viés temporal no filme. Assim, por sua reprodução e/ou citação/alusão pela míse-en-scène, enquadramento, fotografia e montagem, a pintura assumiria uma espécie de tableu vivant. Não é mais um plano isolado ou cenário, mas uma determinada composição de planos.
Como uma seqüência em The Last Temptation of Christ (A Última Tentação de Cristo, 1988), de Martin Scorsese. Nessa seqüência, o personagem de Cristo interpretado pelo ator Willem Dafoe carrega a cruz –  no momento conhecido na liturgia cristã como o da Paixão – e é cercado por soldados e outros personagens que escarnecem dele. De tal plano sequência se pode dizer que é claramente referendado pela pintura de Hieronimus Bosch (c. 1450-1516), Cristo Carregando a Cruz (1515)[2], e explorado em seus detalhes de uma maneira quase mimética, entremeada pela trilha sonora e câmera lenta na montagem. O componente temporal da montagem e da trilha vem animar ou deslocar os detalhes da pintura, em suas passagens cinematográficas. A ‘vivificação’ dessa pintura através do filme é, portanto, alegorizante e complexa.

                 

                 


Esse tipo de procedimento também pode ser ainda mais enviesado, com a(s) referência(s) a uma, ou mais, obra pictórica não assumindo uma reprodução ‘mimética’, mas por indícios que são trazidos da(s) pintura (s) e que são retrabalhados e/ou incorporados pelos cineastas.
É o que se pode ver em um plano-seqüência do filmeAndrei Rublev (Andrei Rubliov, 1966), de Andrei Tarkovski, em que o painel “Os Caçadores na Neve”, de Pieter Bruegel (O Velho, c. 1525-1569), entre outras obras do mestre flamengo, parecem compor os planos em que um Cristo russificado vive a Paixão. A música e as falas em off dos personagens de Andrei Rublev e Teófanes ‘narram’ o desencanto com a situação das mulheres russas sob a invasão dos tártaros. Desse modo, há um deslocamento de temporalidades sobrepostas. Há, assim, um jogo entre as múltiplas tomadas do Cristo e da crucificação na paisagem com as falas dos personagens de Rublev e Teófanes, que estão numa outra paisagem e em outro tempo. A ambigüidade é evidente, porque não se trata de localizar facilmente a aparição do Cristo como ilustração das falas. Mas, sim, pelo que se poderia chamar de uma presença onírica dentro da própria narrativa, mediante a analogia com as pinturas de Bruegel.[3]

       
          

     

Por outro lado, um quarto momento seria passível de se ler na reprodução, através da câmera, de pinturas em museus e/ou outros ambientes. Através desse trabalho de câmera e fotografia, isso parece sugerir uma qualidade translúcida, pois essa reprodução não é tácita. Determinadas obras assim ‘reproduzidas’ comporiam aí um jogo entre prazer e metáfora visuais e/ou narrativas, de acordo com as diferentes intenções dos cineastas. Como nas pinturas na coleção pessoal do professor de história da arte e agente secreto Jonathan Hemlock (Clint Eastwood), que se apresentam tanto como composição do personagem como interferem em aspectos do próprio triller, em The Eiger Sanction (Escalado para Morrer, EUA, 1975), de Clint Eastwood ou na abertura de Un Flic (Expresso para Bordeaux, FRA, 1972), de Pierre Melville, em que a ação do roubo intercala, na montagem, os ritmos da paisagem, da arquitetura e das pinturas em um Banco.
Obviamente, também se podem mencionar aqueles filmes sobre pintores e que contemplam os elementos citados acima, mas nos quais, além disso, os procedimentos artísticos são reproduzidos, com os personagens trabalhando sobre telas e/ou outros suportes e a montagem, trilha, iluminação, entre outros, competem para reproduzir e ‘animar’ esses movimentos. Obras como Rembrandt (Idem, dir. de Alexander Korda; GBR, 1936), Lust for Life (Fome de Viver, dir. de Vincent Minnelli; EUA, 1956), ou Pollock (Idem; dir. de Ed Harris; EUA, 2000), por exemplo.
            No cinema narrativo, portanto, pode-se observar como as três últimas variações se apresentam conjugadas e/ou isoladas, dependendo de cada filme, diretor e equipe técnica  e das opções estéticas e estilísticas assumidas na concepção e produção dos filmes.



[1] O belo livro de Ben Brewster and Lea JacobsFrom Cinema to Theatre – estuda as relações entre os painéis e técnicas teatrais e suas relações pictóricas com o cinema da década de 10 do século XX, aludindo aos modos pictóricos e teatrais em consonância com a estética fílmica adotada por alguns desses cineastas dessa década: “Enquanto algumas descrições do relacionamento entre cinema e teatro tenderam a assumir que os primeiros cineastas tiveram que romper com o palco, a fim de estabelecer uma estética específica para o novo meio, Theatre to Cinema argumenta que o cinema mudou para as formas pictóricas do teatro nos anos de 1910 para estabelecer um modelo de longa-metragens. O livro traça essa influência na adaptação e transformação dos painéis teatrais, estilos de atuação e técnicas de encenação de palco, examinando filmes tais como Ma ľamor mio non muore!, de Caserini, Jimmy Valentine and The Whip de Tourneur, Ingmarssönerna de  Sjöström  e várias adaptações de Uncle Tom’s Cabin.” Citado In.:
 (“While previous accounts of the relationship between cinema and theatre have tended to assume that early filmmakers had to break away from the stage in order to establish a specific aesthetic for the new medium, Theatre to Cinema argues that the cinema turned to the pictorial, spectacular tradition of the theatre in the 1910s to establish a model for feature filmmaking. The book traces this influence in the adaptation and transformation of the theatrical tableau, acting styles, and staging techniques, examining such films as Caserini’s Ma ľamor mio non muore!, Tourneur’s Alias Jimmy Valentine and The Whip, Sjöström’s Ingmarssönerna, and various adaptations of  Uncle Tom’s Cabin.”) Para a versão em PDF do livro, acesse: https://uwdc.library.wisc.edu/collections/arts/thetr2cnma/

[2] O painel, medindo 74 x 81 cm, que se encontra no Museum of Fine Arts de Ghent, Holanda, foi periciada pelo The Bosch Research and Conservation Project (BRCP), criado em 2010 para estudar e conservar toda a obra de Bosch. O BRCP chegou à conclusão de que a obra é uma cópia de um protótipo realizado por Bosch, tendo sido pintada após a morte do pintor, entre 1530 e 1540.  Fonte: http://vlaamseprimitieven.vlaamsekunstcollectie.be/en/collection/christ-carrying-the-cross

[3] Tarkovski retorna à mesma tela de Bruegel em O Espelho (Zerkalo, 1972) , mas aí o processo é o de ‘reprodução’ cinematográfica da pintura.

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