Apontamentos sobre cinema e pintura
(Este texto é parte de minha pesquisa de pós-doutorado - AS IMAGENS QUE NOS POSSUEM: VARIAÇÕES
SOBRE A POSSESSÃO NOS FILMES DE HORROR SOBRENATURAL - ainda inédito. Convido a todos para seguirem-me através de várias temáticas, como a História da Arte e do Cinema, entre outras constelações estéticas que pretendo publicar aqui. Grato por seu tempo! )
As relações de proximidade que a pintura apresenta com o
cinema constituem um campo inesgotável de estudo, abrindo-se para diversas
formas de abordagem.
Alguns movimentos básicos, a
meu ver, poderiam ser tomados nesses fluxos e refluxos intermináveis entre as
duas mídias.
Em princípio, se poderia
observar uma condição em que os cineastas e equipe técnica se apropriam de
formas da pintura que estruturariam os planos, enquadramentos e/ou mesmo a
disposição de uma determinada sequência: a regra de dois terços (compartilhada
pela fotografia), a pictorialização pelos filtros fotográficos e/ou digitais
nas imagens, entre outros recursos que aludem à pintura ou que se vale de suas
regras de composição, ou mesmo as mate-paintings
(quer artesanais, quer digitais). Dos filmes de Méliès com cenários pintados
como fundo, passando pelos Rear-screen utilizados por Hitchcock e por vários
cineastas até hoje, aos cenários em chroma key e/ou digitalizados de filmes
como Star Wars ou O Senhor dos Anéis,
a pintura continua interagindo com o cinema. [1]
Regra
dos terços. Fotograma de Seven: Os Sete Pecados Capitais (Se7en,
EUA, 1995), dir. de David Fincher.
Fotograma da versão
restaurada (2011) de Viagem à Lua (Le Voyage dans la Lune, 1902),
de Georges Méliès.
Fotograma de Os Pássaros (The Birds,
1963), de Alfred Hitchcock, com falso cenário, ao fundo, em rear-screen.
Num segundo momento, se poderia
observar uma relação mais aberta, assim se poderia chamá-la, em que uma obra
específica da pintura passa a assumir um viés temporal no filme. Assim, por sua
reprodução e/ou citação/alusão pela míse-en-scène, enquadramento,
fotografia e montagem, a pintura assumiria uma espécie de tableu vivant. Não é mais um plano isolado ou cenário, mas uma
determinada composição de planos.
Como uma seqüência em The
Last Temptation of Christ (A Última
Tentação de Cristo, 1988), de Martin Scorsese. Nessa seqüência, o
personagem de Cristo interpretado pelo ator Willem Dafoe carrega a cruz – no momento conhecido na liturgia cristã como o
da Paixão – e é cercado por soldados e outros personagens que escarnecem dele.
De tal plano sequência se pode dizer que é claramente referendado pela pintura
de Hieronimus Bosch (c. 1450-1516), Cristo Carregando a Cruz (1515)[2],
e explorado em seus detalhes de uma maneira quase mimética, entremeada pela
trilha sonora e câmera lenta na montagem. O componente temporal da montagem e
da trilha vem animar ou deslocar os detalhes da pintura, em suas passagens
cinematográficas. A ‘vivificação’ dessa pintura através do filme é, portanto,
alegorizante e complexa.
Esse tipo de procedimento
também pode ser ainda mais enviesado, com a(s) referência(s) a uma, ou mais,
obra pictórica não assumindo uma reprodução ‘mimética’, mas por indícios que
são trazidos da(s) pintura (s) e que são retrabalhados e/ou incorporados pelos
cineastas.
É o que se pode ver em um plano-seqüência do filmeAndrei Rublev (Andrei Rubliov, 1966), de Andrei Tarkovski, em que o painel “Os
Caçadores na Neve”, de Pieter Bruegel (O Velho, c. 1525-1569), entre outras
obras do mestre flamengo, parecem compor os planos em que um Cristo russificado
vive a Paixão. A música e as falas em off dos personagens de Andrei
Rublev e Teófanes ‘narram’ o desencanto com a situação das mulheres russas sob
a invasão dos tártaros. Desse modo, há um deslocamento de temporalidades
sobrepostas. Há, assim, um jogo entre as múltiplas tomadas do Cristo e da
crucificação na paisagem com as falas dos personagens de Rublev e Teófanes, que
estão numa outra paisagem e em outro tempo. A ambigüidade é evidente, porque
não se trata de localizar facilmente a aparição do Cristo como ilustração das
falas. Mas, sim, pelo que se poderia chamar de uma presença onírica dentro da
própria narrativa, mediante a analogia com as pinturas de Bruegel.[3]
Por outro lado, um quarto
momento seria passível de se ler na reprodução, através da câmera, de pinturas
em museus e/ou outros ambientes. Através desse trabalho de câmera e fotografia,
isso parece sugerir uma qualidade translúcida, pois essa reprodução não é
tácita. Determinadas obras assim ‘reproduzidas’ comporiam aí um jogo entre
prazer e metáfora visuais e/ou narrativas, de acordo com as diferentes
intenções dos cineastas. Como nas pinturas na coleção pessoal do professor de
história da arte e agente secreto Jonathan Hemlock (Clint Eastwood), que se
apresentam tanto como composição do personagem como interferem em aspectos do
próprio triller, em The Eiger Sanction (Escalado para Morrer, EUA, 1975), de Clint Eastwood ou na abertura
de Un Flic (Expresso para Bordeaux, FRA, 1972), de Pierre Melville, em que a ação
do roubo intercala, na montagem, os ritmos da paisagem, da arquitetura e das
pinturas em um Banco.
Obviamente, também se podem
mencionar aqueles filmes sobre pintores e que contemplam os elementos citados
acima, mas nos quais, além disso, os procedimentos artísticos são reproduzidos,
com os personagens trabalhando sobre telas e/ou outros suportes e a montagem,
trilha, iluminação, entre outros, competem para reproduzir e ‘animar’ esses
movimentos. Obras como Rembrandt (Idem, dir. de Alexander Korda; GBR,
1936), Lust for Life (Fome de Viver, dir. de Vincent Minnelli;
EUA, 1956), ou Pollock (Idem; dir. de Ed Harris; EUA, 2000), por
exemplo.
No cinema narrativo, portanto, pode-se observar como as três últimas
variações se apresentam conjugadas e/ou isoladas, dependendo de cada filme,
diretor e equipe técnica e das opções
estéticas e estilísticas assumidas na concepção e produção dos filmes.
[1] O belo livro de Ben Brewster and Lea Jacobs – From Cinema to Theatre – estuda as relações entre os painéis e técnicas
teatrais e suas relações pictóricas com o cinema da década de 10 do século XX,
aludindo aos modos pictóricos e teatrais em consonância com a estética fílmica adotada
por alguns desses cineastas dessa década:
“Enquanto algumas descrições do relacionamento entre cinema e teatro tenderam a
assumir que os primeiros cineastas tiveram que romper com o palco, a fim de
estabelecer uma estética específica para o novo meio, Theatre to Cinema
argumenta que o cinema mudou para as formas pictóricas do teatro nos anos de
1910 para estabelecer um modelo de longa-metragens. O livro traça essa
influência na adaptação e transformação dos painéis teatrais, estilos de
atuação e técnicas de encenação de palco, examinando filmes tais como Ma ľamor mio non
muore!, de Caserini, Jimmy Valentine and The Whip de
Tourneur, Ingmarssönerna
de Sjöström e várias adaptações de Uncle Tom’s
Cabin.” Citado In.:
(“While previous accounts of the
relationship between cinema and theatre have tended to assume that early
filmmakers had to break away from the stage in order to establish a specific
aesthetic for the new medium, Theatre to
Cinema argues that the cinema
turned to the pictorial, spectacular tradition of the theatre in the 1910s to
establish a model for feature filmmaking. The book traces this influence in the
adaptation and transformation of the theatrical tableau, acting styles, and
staging techniques, examining such films as Caserini’s Ma ľamor mio non
muore!,
Tourneur’s Alias Jimmy
Valentine and The Whip,
Sjöström’s Ingmarssönerna,
and various adaptations of Uncle Tom’s
Cabin.”) Para a versão em PDF do livro, acesse: https://uwdc.library.wisc.edu/collections/arts/thetr2cnma/
[2] O painel, medindo 74 x 81 cm,
que se encontra no Museum of Fine Arts de Ghent, Holanda, foi periciada pelo
The Bosch Research and Conservation Project (BRCP), criado em 2010 para estudar
e conservar toda a obra de Bosch. O BRCP chegou à conclusão de que a obra é uma
cópia de um protótipo realizado por Bosch, tendo sido pintada após a morte do
pintor, entre 1530 e 1540. Fonte: http://vlaamseprimitieven.vlaamsekunstcollectie.be/en/collection/christ-carrying-the-cross
[3] Tarkovski retorna à mesma tela
de Bruegel em O Espelho (Zerkalo, 1972) , mas aí o
processo é o de ‘reprodução’ cinematográfica da pintura.
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