Possuído
pelas imagens
No cinema de horror sobrenatural, em um caso em que a
pintura funciona como possessão, a meu ver há um dos mais belos - e raros – exemplos em The Haunted Palace (O Castelo
Assombrado, 1963), de Roger Corman.
Uma relação intensificada pelo
próprio e mítico ator Vincent Price, que contracena com pinturas em outros filmes:
em The House of The Seven Gables (
terceira história de Twice-Told Tales
(Nos Domínios do Terror; dir. Sidney
Salkow, EUA, 1963), uma pintura é o
eixo narrativo na luta entre dois irmãos por uma herança, sob uma maldição que
recai sobre a família; em colaborações anteriores com Roger Corman, no chamado
ciclo Edgar Alan Poe de Corman, as pinturas desempenham aspectos alegorizantes
e de cenário, como em O Solar Maldito/A
Queda da Casa de Usher (House of
Usher, EUA, 1960) e O Poço e
o Pêndulo (Pit and the Pendulum,
EUA, 1961), produções que inseminam muitas construções plásticas de The Haunted Palace.[1]
Em
The Haunted Palace, Charles Dexter
Ward (Vincent Price), retorna ao vilarejo de Arkhan com sua mulher para herdar
um palácio/castelo, onde um bruxo (Joseph Curwen/Vincent Price) fora queimado
150 anos antes.
Advertido pelos moradores locais,
descendentes dos antepassados que queimaram Curwen, Ward e sua esposa decidem
assim mesmo herdar o castelo.
Desde o primeiro contato com a
pintura, Ward é imediatamente ‘hipnotizado’ por sua presença e a extrema
semelhança do retrato com ele. Esse efeito de duplicidade também se desloca por
todo o filme, com os mesmos atores da sequência inicial desempenhando o papel
dos descendentes, aos quais Curwen havia amaldiçoado. Esse movimento especular
é o oposto da história célebre de Dorian
Grey, de Oscar Wilde, pois o retrato funciona como um aprisionamento da
alma e do corpo de Grey, enquanto aqui, ocorre uma fusão entre o espírito do
feiticeiro no retrato e seu descendente, Charles Ward e, portanto, uma fusão no
sentido que lhe dá Noël Carrol[2].
Nesse primeiro contato e nos
subsequentes, a câmera enquadra o personagem em câmera alta e campos e
contracampos entre o personagem e a pintura com tomadas de ponto de vista, com
a trilha sinfônica de Ronald Stein sublinhando cada momento, sobretudo no leitmotif em que as cordas e o metais de
sopro trazem sempre os elementos trágicos recorrentes na composição
plástico-musical. A míse-en-scène (encenação) opera com as expressões alternadas do ator, até a sua possessão pelo retrato.
Sem adentrar as questões que permeiam o cinema tido como
produção B e o cinema de Roger Corman em particular, cabe observar alguns
aspectos kitschs, pois a pintura é
realizada num registro ‘expressionista’ (observe-se os galhos da árvore, por
exempo), inexistente para aquela época, pois o retrato teria sido pintado no
século XVII (a história se passa 150 anos após a morte de Curwen). O mesmo
ocorre nos outros filmes mencionados antes, em que Vincent Price contracena com
pinturas, pois os registros estilísticos das pinturas não obedecem a nenhuma
aparência de fidedignidade histórica (quando não são apenas grosseiramente
realizadas). Mesmo apesar disso, elas cumprem muito bem suas funções narrativas
e os objetivos de perplexidade e espanto nos filmes.
The
Haunted Palace se estrutura todo por uma intensa espacialidade, em que o
palácio/castelo orienta as (re) descobertas de Ward, além do vilarejo e o pátio
com as árvores mortas. A própria pintura esconde, abaixo dela, uma entrada
secreta, em que o livro do Necronomicon de Lovecraft constitui a chave para
trazer os horrores secretos de Curwen de volta.
Desde o início, sob a forte
picturialidade dos cenários, a mìse-en-scéne
conduz o personagem para o encontro com o retrato: abrir a porta do palácio é
já um modo de captura, em que planos-detalhes alternados com planos de conjunto
e de profundidade de campo vão modulando toda uma aproximação, recuo e nova
aproximação.
Os movimentos de câmera orientam o
espectador para essas transições no interior do cenário num ir e vir teatrais,
em que a pintura fica enquadrada e desenquadrada nos planos, para que retorne e a tomada em câmera alta e
em plano médio focalize a pintura e o olhar ameaçador do Ward pictórico. A
inversão do ponto de vista é significativa, pois a câmera passa a filmar do
ponto de vista da pintura.
Quando Ward volta a encarar a pintura novamente, como uma
dança e contradança entre retrato e ator, os planos alternados entre eles com a
trilha descritiva operam a primeira possessão de Ward pela pintura.
Embora Corman tenha se baseado, no
roteiro, em O Caso de Charles Dexter Ward,
de H. P. Lovecraft (fundindo com um poema de Edgar Alan Poe), não há no livro
nenhuma situação direta de possessão pela pintura, mas sim a subsequente possessão
pela mudança de personalidade do Ward literário (com várias camadas de
descrição desse processo), de modo que a possessão cinematográfica encenada por
Corman e seus colaboradores com a pintura é original.
Não por acaso, no primeiro episódio
da terceira temporada de Night Gallery
(Galeria do Terror, EUA, dir. vários,
1969-1973), The Return of the Sorcerer (dir. de Jeannot Swarcz,
1972), produzido por Rod Serling, Vincent Price contracena com pinturas novamente,
numa outra adaptação de Lovecraft.
Para a abertura e trilha principal, vide link abaixo no youtube:
[1] Os cenários eram reutilizados e
adaptados filme a filme, durante todo o ciclo de filmes sobre Poe realizados
por Corman e sua equipe.
[2]
“Uma das estruturas da composição
de seres horrendos é a fusão. No nível físico mais simples, isso muitas vezes suscita a construção
de criaturas que transgridem distinções categóricas como dentro/fora,
vivo/morto, inseto/humano, corpo/máquina, e assim por diante. (...). A principal marca de uma figura
de fusão é a mistura de categorias normalmente separadas ou conflitantes num
indivíduo integral, espaço-temporalmente unificado. Nesse aspecto, muitos dos
personagens das histórias de possessão são figuras de fusão. Podem ser
possuídos por muitos demônios – ‘Meu nome é legião’ – ou por um só. Mas por
serem seres compostos, situáveis num continuum espaço-temporal indiviso, com uma única identidade, classificá-los-emos
como figuras de fusão.” In: Noël Carroll, A Filosofia do Horror, pp. 64-65.
Essas e outras categorizações de impurezas
dos monstros são tomadas de empréstimo do estudo clássico de Mary Douglas, Purity and Danger. Vide Carrol, idem, p. 50.
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