Friday, November 8, 2019


Possuído pelas imagens

            No cinema de horror sobrenatural, em um caso em que a pintura funciona como possessão, a meu ver há um dos mais belos - e  raros –  exemplos em The Haunted Palace (O Castelo Assombrado, 1963), de Roger Corman.
            Uma relação intensificada pelo próprio e mítico ator Vincent Price, que contracena com pinturas em outros filmes: em The House of The Seven Gables ( terceira história de Twice-Told Tales (Nos Domínios do Terror; dir. Sidney Salkow, EUA, 1963), uma pintura é o eixo narrativo na luta entre dois irmãos por uma herança, sob uma maldição que recai sobre a família; em colaborações anteriores com Roger Corman, no chamado ciclo Edgar Alan Poe de Corman, as pinturas desempenham aspectos alegorizantes e de cenário, como em O Solar Maldito/A Queda da Casa de Usher (House of Usher, EUA, 1960) e  O Poço e o Pêndulo (Pit and the Pendulum, EUA, 1961), produções que inseminam muitas construções plásticas de The Haunted Palace.[1]
            Em The Haunted Palace, Charles Dexter Ward (Vincent Price), retorna ao vilarejo de Arkhan com sua mulher para herdar um palácio/castelo, onde um bruxo (Joseph Curwen/Vincent Price) fora queimado 150 anos antes.
            Advertido pelos moradores locais, descendentes dos antepassados que queimaram Curwen, Ward e sua esposa decidem assim mesmo herdar o castelo.
            Desde o primeiro contato com a pintura, Ward é imediatamente ‘hipnotizado’ por sua presença e a extrema semelhança do retrato com ele. Esse efeito de duplicidade também se desloca por todo o filme, com os mesmos atores da sequência inicial desempenhando o papel dos descendentes, aos quais Curwen havia amaldiçoado. Esse movimento especular é o oposto da história célebre de Dorian Grey, de Oscar Wilde, pois o retrato funciona como um aprisionamento da alma e do corpo de Grey, enquanto aqui, ocorre uma fusão entre o espírito do feiticeiro no retrato e seu descendente, Charles Ward e, portanto, uma fusão no sentido que lhe dá Noël Carrol[2].
            Nesse primeiro contato e nos subsequentes, a câmera enquadra o personagem em câmera alta e campos e contracampos entre o personagem e a pintura com tomadas de ponto de vista, com a trilha sinfônica de Ronald Stein sublinhando cada momento, sobretudo no leitmotif em que as cordas e o metais de sopro trazem sempre os elementos trágicos recorrentes na composição plástico-musical. A míse-en-scène (encenação) opera com as expressões alternadas do ator, até a sua possessão pelo retrato.


                              
                              


            Sem adentrar as questões que permeiam o cinema tido como produção B e o cinema de Roger Corman em particular, cabe observar alguns aspectos kitschs, pois a pintura é realizada num registro ‘expressionista’ (observe-se os galhos da árvore, por exempo), inexistente para aquela época, pois o retrato teria sido pintado no século XVII (a história se passa 150 anos após a morte de Curwen). O mesmo ocorre nos outros filmes mencionados antes, em que Vincent Price contracena com pinturas, pois os registros estilísticos das pinturas não obedecem a nenhuma aparência de fidedignidade histórica (quando não são apenas grosseiramente realizadas). Mesmo apesar disso, elas cumprem muito bem suas funções narrativas e os objetivos de perplexidade e espanto nos filmes.
            The Haunted Palace se estrutura todo por uma intensa espacialidade, em que o palácio/castelo orienta as (re) descobertas de Ward, além do vilarejo e o pátio com as árvores mortas. A própria pintura esconde, abaixo dela, uma entrada secreta, em que o livro do Necronomicon de Lovecraft constitui a chave para trazer os horrores secretos de Curwen de volta.
            Desde o início, sob a forte picturialidade dos cenários, a mìse-en-scéne conduz o personagem para o encontro com o retrato: abrir a porta do palácio é já um modo de captura, em que planos-detalhes alternados com planos de conjunto e de profundidade de campo vão modulando toda uma aproximação, recuo e nova aproximação.          
             
               
                            

    
            Os movimentos de câmera orientam o espectador para essas transições no interior do cenário num ir e vir teatrais, em que a pintura fica enquadrada e desenquadrada nos planos,  para que retorne e a tomada em câmera alta e em plano médio focalize a pintura e o olhar ameaçador do Ward pictórico. A inversão do ponto de vista é significativa, pois a câmera passa a filmar do ponto de vista da pintura. 
            Quando Ward volta a encarar a pintura novamente, como uma dança e contradança entre retrato e ator, os planos alternados entre eles com a trilha descritiva operam a primeira possessão de Ward pela pintura.







                                        
     


            Embora Corman tenha se baseado, no roteiro, em O Caso de Charles Dexter Ward, de H. P. Lovecraft (fundindo com um poema de Edgar Alan Poe), não há no livro nenhuma situação direta de possessão pela pintura, mas sim a subsequente possessão pela mudança de personalidade do Ward literário (com várias camadas de descrição desse processo), de modo que a possessão cinematográfica encenada por Corman e seus colaboradores com a pintura é original.
            Não por acaso, no primeiro episódio da terceira temporada de Night Gallery (Galeria do Terror, EUA, dir. vários, 1969-1973), The Return of  the Sorcerer (dir. de Jeannot Swarcz, 1972), produzido por Rod Serling, Vincent Price contracena com pinturas novamente, numa outra adaptação de Lovecraft.

          


Para a abertura e trilha principal, vide link abaixo no youtube:




[1] Os cenários eram reutilizados e adaptados filme a filme, durante todo o ciclo de filmes sobre Poe realizados por Corman e sua equipe.
[2] “Uma das estruturas da composição de seres horrendos é a fusão. No nível físico mais simples, isso muitas vezes suscita a construção de criaturas que transgridem distinções categóricas como dentro/fora, vivo/morto, inseto/humano, corpo/máquina, e assim por diante. (...). A principal marca de uma figura de fusão é a mistura de categorias normalmente separadas ou conflitantes num indivíduo integral, espaço-temporalmente unificado. Nesse aspecto, muitos dos personagens das histórias de possessão são figuras de fusão. Podem ser possuídos por muitos demônios – ‘Meu nome é legião’ – ou por um só. Mas por serem seres compostos, situáveis num continuum espaço-temporal indiviso, com uma única identidade, classificá-los-emos como figuras de fusão.” In: Noël Carroll, A Filosofia do Horror, pp. 64-65.  Essas e outras categorizações de impurezas dos monstros são tomadas de empréstimo do estudo clássico de Mary Douglas, Purity and Danger. Vide Carrol, idem, p. 50.


No comments:

Post a Comment